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terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

DE RAMO EM RAMO

Não queiras transformar
em nostalgia
o que foi exaltação,
em lixo o que foi cristal.
A velhice,
o primeiro sinal
de doença da alma,
às vezes contamina o corpo.
Nenhum pássaro
permite à morte dominar
o azul do seu canto.
Faz como eles: dança de ramo
em ramo.
______
Eugénio de Andrade
 DESPERTAR

É um pássaro, é uma rosa,
é o mar que me acorda?
Pássaro ou rosa ou mar,
tudo é ardor, tudo é amor.
Acordar é ser rosa na rosa,
canto na ave, água no mar.
______
Eugénio de Andrade
 ATÉ AMANHÃ

Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.

É primeiro só um rumor de espuma
à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado,
amanhecer de pássaros no sangue.

É subitamente um grito,
um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.

Falei de tudo quanto amei.
De coisas que te dou
para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias.
______
Eugénio de Andrade


PRIMEIRAMENTE

   Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a madrugada apenas com as duas mãos que me deixaste, hesitante nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus. 
   E é assim que a noite chega, e dentro dela te procuro, encostado ao teu nome, pelas ruas álgidas onde tu não passas, a solidão aberta nos dedos como um cravo. 
   Meu amor, amor duma breve madrugada de bandeiras, arranco a tua boca da minha e desfolho-a lentamente, até que outra boca — e sempre a tua boca — comece de novo a nascer na minha boca. 
   Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros, encostar a face ao rosto lunar dos bêbados e perguntar o que aconteceu.
______

Eugénio de Andrade
 XXXI. ESPERA

Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.
______

Eugénio de Andrade

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

 O AMIGO

Não voltará - o que dele me ficou
é como no inverno entre cortinas
de chuva um tímido fio de sol:
ilumina mas não aquece as mãos.
______
Eugénio de Andrade

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

V

Um amigo é às vezes o deserto,
outras a água.
Desprende-te do ínfimo rumor
de agosto; nem sempre

um corpo é o lugar da furtiva
luz despida, de carregados
limoeiros de pássaros
e o verão nos cabelos;

é na escura folhagem do sono
que brilha
a pele molhada,
a difícil floração da língua.

O real é a palavra.
______
Eugénio de Andrade
 [...]

Há casas que são um poema
para dar a um amigo.
______

Eugénio de Andrade
DISSONÂNCIAS

Pedra a pedra
a casa vai regressar.
Já nos ombros sinto o ardor
da sua navegação.

Vai regressar
o silêncio com as harpas.
As harpas com as abelhas.

No verão morre-se
tão devagar à sombra dos ulmeiros!

Direi então:
Um amigo
é o lugar da terra
onde as maçãs brancas são mais doces.

Ou talvez diga:
O outono amadurece nos espelhos.
Já nos meus ombros sinto
a sua respiração.
Não há regresso: tudo é labirinto.
______
Eugénio de Andrade
OS AMIGOS

Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham;
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria —
por mais amarga.
______

Eugénio de Andrade

domingo, 7 de agosto de 2016

Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.

(Eugénio de Andrade)