quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

 Autotomia


Em perigo, a holotúria se divide em duas:
com uma metade se entrega à voracidade do mundo,
com a outra foge.

Desintegra-se violentamente em ruína e salvação,
em multa e prêmio, no que foi e no que será.

No meio do corpo da holotúria se abre um abismo
com duas margens subitamente estranhas.

Em uma margem a morte, na outra a vida.
Aqui o desespero, lá o alento.

Se existe uma balança, os pratos não oscilam.
Se existe justiça, é esta.

Morrer só o necessário, sem exceder a medida.
Regenerar quanto for preciso da parte que restou.

Também nós, é verdade, sabemos nos dividir.
Mas somente em corpo e sussurro interrompido.
Em corpo e poesia.

De um lado a garganta, do outro o riso,
leve, logo sufocado.

Aqui o coração pesado, lá non omnis moriar,
três palavrinhas apenas como três penas em voo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos circunda.
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Wisława Szymborska
Um amor feliz

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Não é que o mundo seja só ruim e triste. É que as pequenas notícias não saem nos grandes jornais. Quando uma pena flutua no ar por oito segundos ou a menina abraça o seu grande amigo, nenhum jornalista escreve a respeito. Só os poetas o fazem.

(Rita Apoena)

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

me preparo
todos os dias
para o fim
e todo o fim
do dia
estou menos pronto
que ontem
os dias seguem sem qualquer respeito
por meu preparo
meu ontem
meu fim
e meu pranto

- Carlos Canhameiro
Desconhecido afeto

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Tudo em mim tem sido esta vontade de afagar. Há tempos não me ocupo com outra coisa: em tudo que toco ou manuseio há o propósito de cura através do calor das minhas mãos. 

Tudo em mim tem sido a necessidade de vivenciar profundamente. Se as palavras têm estado ausentes, aceito este recolhimento delas. E espero que voltem com um coração pulsando muito vivo dentro de cada uma. 
Por isso a vontade de experienciar cada sensação plenamente antes de tentar decifrar organizando em textos o que tenho sentido. 

Dentro dessa minha desaceleração, tenho descoberto muita coisa como, por exemplo, quão necessário é saber receber amor. Deixar que tudo seja troca antes de ser um troféu. Deixar que o caos se mantenha intacto antes que haja ajustes. 

Ando muito comprometida com as essências. E com um respeito súbito, a partir daí, pelas aparências. Não vejo menores importâncias, vejo acontecimentos. E tenho olhado pras coisas sem aquela grande gravidade. 

Tudo em mim tem sido esta disposição para o amor. E, se vocês pudessem me ver agora, veriam, existe carícia até no meu olhar.

(Marla de Queiroz)
Há um filme de Ingmar Bergman em que uma personagem é uma rapariga anorética - e sabemos como a anorexia é uma forma de desistir da própria vida, de desinvestir afetivamente. A rapariga vai falar com um médico e ele diz-lhe isto, que também vale para todos nós: "Olha, há só um remédio para ti, só vejo um caminho: em cada dia deixa-te tocar por alguém ou por alguma coisa". 

A alegria é esta hospitalidade. 
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José Tolentino Mendonça
Uma beleza que nos pertence

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

[...]

No entanto, minha solidão aqui às vezes é tão real que posso tocá-la com a mão. Outro dia, de madrugada, me senti acabando, me deu aquele medo de mergulhar no sono, aquela angústia, pavor do desconhecido, velhos remorsos voltando à garganta, sentimento de culpa (quem não tem? diz você, com o pecado original, mas o original não é nada, as cópias é que são o diabo), sensação de estar existindo e, portanto, de estar morrendo, meu Deus!

[...]

Se você soubesse a minha alegria com a carta sua, você passava o dia me escrevendo, para dar luz a este cego.
__________
Otto Lara Resende em carta a Fernando Sabino

quinta-feira, 23 de março de 2023

Dá-me 

Dá-me algo mais que silêncio ou doçura
Algo que tenhas e não saibas
Não quero dádivas raras
Dá-me uma pedra

Não fique imóvel fitando-me
como se quisesse dizer
que há muitas coisas mudas
ocultas no que se diz

Dá-me algo lento e fino
como uma faca nas costas
E se nada tens para dar-me
dá-me tudo o que te falta!
______

Carlos Edmundo de Ory
Doze nós numa corda

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

DE RAMO EM RAMO

Não queiras transformar
em nostalgia
o que foi exaltação,
em lixo o que foi cristal.
A velhice,
o primeiro sinal
de doença da alma,
às vezes contamina o corpo.
Nenhum pássaro
permite à morte dominar
o azul do seu canto.
Faz como eles: dança de ramo
em ramo.
______
Eugénio de Andrade
 DESPERTAR

É um pássaro, é uma rosa,
é o mar que me acorda?
Pássaro ou rosa ou mar,
tudo é ardor, tudo é amor.
Acordar é ser rosa na rosa,
canto na ave, água no mar.
______
Eugénio de Andrade
 ATÉ AMANHÃ

Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.

É primeiro só um rumor de espuma
à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado,
amanhecer de pássaros no sangue.

É subitamente um grito,
um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.

Falei de tudo quanto amei.
De coisas que te dou
para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias.
______
Eugénio de Andrade


PRIMEIRAMENTE

   Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a madrugada apenas com as duas mãos que me deixaste, hesitante nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus. 
   E é assim que a noite chega, e dentro dela te procuro, encostado ao teu nome, pelas ruas álgidas onde tu não passas, a solidão aberta nos dedos como um cravo. 
   Meu amor, amor duma breve madrugada de bandeiras, arranco a tua boca da minha e desfolho-a lentamente, até que outra boca — e sempre a tua boca — comece de novo a nascer na minha boca. 
   Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros, encostar a face ao rosto lunar dos bêbados e perguntar o que aconteceu.
______

Eugénio de Andrade
 XXXI. ESPERA

Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.
______

Eugénio de Andrade

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Mora Comigo

Mora comigo em minha casa
Um rapaz que eu amo;
Aquilo que ele não me diz porque não sabe,
Vai me dizendo com o seu corpo
Que dança pra mim.
Ele me adora e eu vejo através dos seus olhos
Um menino que aperta o gatilho do coração
Sem saber o nome do que pratica.
Ele me adora e eu o gratifico
Só com os olhos que o vejo.
Corto todas as cebolas da casa,
Arrasto os móveis, incenso.
Ele tem um medo de dizer que me ama.
E me aperta a mão,
E me chama de amiga.

(Luiz Carlos Lacerda)

Texto introdutório da música "Esse Cara" de Caetano Veloso, Roberto Martins e M. Rossi.

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

 O AMIGO

Não voltará - o que dele me ficou
é como no inverno entre cortinas
de chuva um tímido fio de sol:
ilumina mas não aquece as mãos.
______
Eugénio de Andrade
O CORAÇÃO SOBRE A MESA

O coração sobre a mesa
não diz uma palavra.
Não pede, não cansa, não revela.
Observo, como um legista
o objeto alheio
a pulsação antiga que mantém
órgãos, intentos, entranhas, reflexos.
E súbito, em suas paredes
em carnosidades avermelhadas
surge desenhos, talhos, remendos.
Toco o peito vazio.
O coração respira, na mesa
movido por um moto-perpétuo.
Não há sístole ou diástole.
Sou eu, com medo de dormir sozinho
em alguma noite antiga.
É o telegrama com a morte
do tio Ademar.
São as lágrimas de minha mãe
na noite de Pentecostes.
É o dia em que cheguei ao Recife
com uma caixa de livros.
Na rodoviária, sentia frio
não sabia o que sentir
não sabia meu nome.
Meu coração ainda não era meu.
(Samarone Lima)