quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

 Autotomia


Em perigo, a holotúria se divide em duas:
com uma metade se entrega à voracidade do mundo,
com a outra foge.

Desintegra-se violentamente em ruína e salvação,
em multa e prêmio, no que foi e no que será.

No meio do corpo da holotúria se abre um abismo
com duas margens subitamente estranhas.

Em uma margem a morte, na outra a vida.
Aqui o desespero, lá o alento.

Se existe uma balança, os pratos não oscilam.
Se existe justiça, é esta.

Morrer só o necessário, sem exceder a medida.
Regenerar quanto for preciso da parte que restou.

Também nós, é verdade, sabemos nos dividir.
Mas somente em corpo e sussurro interrompido.
Em corpo e poesia.

De um lado a garganta, do outro o riso,
leve, logo sufocado.

Aqui o coração pesado, lá non omnis moriar,
três palavrinhas apenas como três penas em voo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos circunda.
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Wisława Szymborska
Um amor feliz

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