terça-feira, 17 de janeiro de 2023

O CORAÇÃO SOBRE A MESA

O coração sobre a mesa
não diz uma palavra.
Não pede, não cansa, não revela.
Observo, como um legista
o objeto alheio
a pulsação antiga que mantém
órgãos, intentos, entranhas, reflexos.
E súbito, em suas paredes
em carnosidades avermelhadas
surge desenhos, talhos, remendos.
Toco o peito vazio.
O coração respira, na mesa
movido por um moto-perpétuo.
Não há sístole ou diástole.
Sou eu, com medo de dormir sozinho
em alguma noite antiga.
É o telegrama com a morte
do tio Ademar.
São as lágrimas de minha mãe
na noite de Pentecostes.
É o dia em que cheguei ao Recife
com uma caixa de livros.
Na rodoviária, sentia frio
não sabia o que sentir
não sabia meu nome.
Meu coração ainda não era meu.
(Samarone Lima)
"As pessoas cuidadosas ou delicadas eram enfeitadas. Essas coisas eram como adornos no modo de ser."

Valter Hugo Mãe

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

O que a gente tem que aprender é, a cada instante, afinar-se como uma linhazinha, para saber passar no furo de agulha, que cada momento exige.
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João Guimarães Rosa

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Um minuto de silêncio por Ludwika Wawrzyńska 

Aonde você vai 
Lá tem só fumaça e fogo! 
— Lá tem quatro crianças, 
vou buscá-las logo. 

Mas como, 
desabituar-se de si 
tão de repente? 
da ordem das noites e dos dias? 
das neves do próximo ano? 
do rubro das maçãs? 
da mágoa pelo amor 
que nunca é demais? 

Sem saudar, sem ser saudada, 
para socorrer os pequenos sozinha se afana, 
vejam, nos braços ela os carrega, 
até os joelhos no fogo afundada, 
na louca cabeleira tem o lume das chamas. 

E queria comprar uma passagem, 
visitar uma amiga, 
escrever uma carta, 
escancarar a janela depois da tormenta, 
caminhar pela floresta, 
se encantar com as formigas,
observar como o lago 
se encrespa quando venta. 

Um minuto de silêncio pelos mortos 
às vezes dura até tarde da noite. 

Sou testemunha ocular 
do voo das nuvens e dos pássaros 
ouço como crescem as folhas 
e conheço os nomes delas, 
decifrei milhões 
de caracteres impressos, 
segui com o telescópio 
as mais estranhas estrelas, 
só que ninguém até agora 
me pediu socorro, 
e se eu lastimar 
uma folha, um vestido, um verso — 

Só nos conhecemos na medida 
em que somos postos à prova. 
Digo-lhes isso 
do meu coração, que desconheço.
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Wisława Szymborska
Para o meu coração num domingo

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

A poesia é das raras atividades humanas que, no tempo atual, tentam salvar uma certa espiritualidade. A poesia não é uma espécie de religião, mas não há poeta, crente ou descrente, que não escreva para a salvação da sua alma – quer a essa alma se chame amor, liberdade, dignidade ou beleza.
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Sophia de Mello Breyner Andresen
entrevista ao Jornal de Letras em 17/12/97

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

MÃOS

Côncavas de ter
Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender.
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Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

CANSAÇO

Tarde caindo —
Um suave lamento
soa nos pios dos pássaros
que convoquei.

Muros cinzentos
desmoronam.
Minhas próprias mãos
encontram-se novamente.

O que amei
não posso manter.
O que me cerca
não posso deixar.

Tudo declina
enquanto cresce a escuridão.
Não me domina —
deve ser o curso da vida.
______

Hannah Arendt

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

[...]

Depois, um amigo me chamou para ajudá-lo a cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso. E fui. Não por nobreza: cuidar dele faria com que eu esquecesse de mim. E fez.

_____
Caio Fernando Abreu 
Trecho de "Pálpebras de neblina"
Fim de tarde. Dia banal, terça, quarta-feira. Eu estava me sentindo muito triste. Você pode dizer que isso tem sido frequente demais, até mesmo um pouco (ou muito) chato. Mas, que se há de fazer, se eu estava mesmo muito triste? Tristeza-garoa, fininha, cortante, persistente, com alguns relâmpagos de catástrofe futura. Projeções: e amanhã, e depois? E trabalho, amor, moradia? O que vai acontecer? Típico pensamento-nada-a-ver: sossega, o que vai acontecer acontecerá. Relaxa, baby, e flui: barquinho na correnteza, Deus-dará.

[...]


Caio Fernando Abreu
Trecho de "Pálpebras de neblina"
 [...]

Mudando de assunto sem mudar propriamente, tenho aprendido muito com o jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples, fáceis, até um pouco brutas.

Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir.

Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada. Viajei por quase um mês no verão, quando voltei, a casa tinha sido pintada, muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados. Fiquei uma fera. Gritei com o pintor: “Mas o senhor não sabe que as plantas sentem dor que nem a gente?” O homem ficou me olhando tão pálido quanto aquele vizinho. Não, ele não sabe, entendi. E fui cuidar do que restava, que é sempre o que se deve fazer. 

Porque tem outra coisa: girassol quando abre flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então, como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra, exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto.
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Caio Fernando Abreu
trecho de "A morte dos girassóis"
 É ISTO O AMOR

Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.
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Nuno Júdice

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

[...]

Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa...
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Caio Fernando Abreu
GÊNESE
 
Todo o poema começa de manhã, com o sol. Mesmo
que o poema não esteja à vista (isto é céu de chuva)
o poema é o que explica tudo, o que dá luz
à terra, ao céu, e com nuvens à mistura – 
a luz incomoda
quando é excessiva. Depois, o poema sobe
com as névoas que o dia arrasta; 
mete-se pelas copas das
árvores, canta com os pássaros e corre com os ribeiros
que vêm não se sabe de onde e vão para onde
não se sabe. O poema conta como tudo é feito:
menos ele próprio, que começa por uma acaso cinzento,
como esta manhã, e acaba, também por acaso.
com o sol a querer romper.
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Nuno Júdice
Todas as minhas fontes vêm de ti
As nascentes
E amo-te com a constância do moribundo que respira
Já sem saber de que lado o visita a morte

Procuro a ligação entre ti e a luz muito miudinha depois
[dos temporais
Entre a luz e os estilhaços nas ruas bombardeadas
Desconheço o colar onde unes tudo

Procuro entender como é que moldas
Os meus pés ao equilíbrio que os desloca no chão
Sei que és tu que me levantas
Que remendas o meu corpo cada dia

Em ti encontro a pulsação
Que rebenta - uma artéria como nunca
Tinha jorrado. Cratera onde durmo
Recluso, árvore à chuva
Em dificuldade extrema
De respiração

Ponho a cabeça entre os ramos, lanço os braços para fora
Como um pássaro entre um bando
De disparos

Tu moves as agulhas, tu unes de novo
As minhas asas à curva do céu
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Daniel Faria

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Eu não me aprovo porque mal consigo viver comigo mesmo. Faço quase o impossível para ter isenção. Isenção de mim. Estou quase atingindo esse estado de beatitude.
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Clarice Lispector
Um sopro de vida